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5 maneiras ruins de abordar o Antigo Testamento


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por Vern S. Poythress — 10 de julho de 2024

O Desafio da Compreensão de Jesus no Antigo Testamento

Por que é importante entender o Antigo Testamento?

Em duas ocasiões distintas, registradas em Lucas 24, Jesus indica que o Antigo Testamento é sobre ele. A primeira delas ocorreu quando ele encontrou dois discípulos na estrada para Emaús:

Então ele lhes disse: — Como vocês são insensatos e demoram para crer em tudo o que os profetas disseram! Não é verdade que o Cristo tinha de sofrer e entrar na sua glória? E, começando por Moisés e todos os Profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras. (Lucas 24:25–27)

Mais tarde, ele falou em termos semelhantes a um grupo maior de discípulos:

A seguir, Jesus lhes disse: — São estas as palavras que eu lhes falei, estando ainda com vocês: era necessário que se cumprisse tudo o que está escrito a respeito de mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras. E disse-lhes: — Assim está escrito que o Cristo tinha de sofrer, ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando em Jerusalém. (Lucas 24:44–47)

Vale a pena olhar para essas duas passagens com mais cuidado, especialmente a segunda. “As Escrituras” aqui são o Antigo Testamento. Os judeus da época de Jesus reconheceram três grandes divisões no Antigo Testamento. A “Lei de Moisés” contém os primeiros cinco livros, Gênesis a Deuteronômio. “Os Profetas” inclui tanto o que os judeus chamam de “Profetas Anteriores”, ou seja, os livros históricos Josué, Juízes, 1–2 Samuel e 1–2 Reis; e os “Profetas Posteriores”, os livros proféticos de Isaías, Jeremias, Ezequiel e Oseias a Malaquias. A terceira divisão no cálculo judaico é “os Escritos”, que é mais diversa e inclui todos os outros livros do cânone judaico (Rute, 1–2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações e Daniel). Os Salmos são os mais proeminentes neste terceiro grupo, “os Escritos”. De acordo com Jesus, todos os três grupos testemunham seu sofrimento e sua ressurreição. Em Lucas 24:44–47, a frase “Assim está escrito” introduz um resumo do impulso de todo o Antigo Testamento, isto é, “as Escrituras” que existiam na época em que Jesus falou, o tempo antes da composição de quaisquer livros do Novo Testamento. [1]

Podemos acreditar que o que Jesus disse é verdade, mas ainda não vemos como é verdade. Como pode ser que “as Escrituras” como um todo sejam sobre seu sofrimento e sua ressurreição?

Depois que Jesus falou com os discípulos na estrada para Emaús, eles disseram um ao outro: “Não é verdade que o coração nos ardia no peito, quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lucas 24:32). Eles viram o verdadeiro significado do Antigo Testamento e foram transformados. Mas nós não estávamos lá com eles para ouvir o que Jesus disse.

Jesus, no entanto, ensinou não apenas esses dois discípulos, mas, como vimos, um grupo maior, durante o tempo entre sua ressurreição e sua ascensão (Lucas 24:44–51; veja também Atos 1:3). Entre essas pessoas estavam alguns dos autores humanos dos livros do Novo Testamento. O Novo Testamento foi escrito por pessoas inspiradas pelo Espírito Santo. Jesus enviou o Espírito para continuar seu ensino, e isso inclui ensinar-lhes o significado do Antigo Testamento:

[Eu, Jesus] Tenho ainda muito para lhes dizer, mas vocês não o podem suportar agora. Porém, quando vier o Espírito da verdade, ele os guiará em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouvir e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele me glorificará, porque vai receber do que é meu e anunciará isso a vocês. Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso eu disse que o Espírito vai receber do que é meu e anunciar isso a vocês. (João 16:12–15)

Então, por meio do Novo Testamento, temos instruções que nos permitem apreciar corretamente o Antigo Testamento. E essa apreciação significa entender como o Antigo Testamento aponta para Cristo.
O Antigo Testamento projetado para nós

Devemos entender que Deus nos deu a Bíblia inteira para nossa instrução, não apenas o Novo Testamento. Romanos 15:4 diz:

Pois tudo o que no passado foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança.

Da mesma forma, 1 Coríntios 10 indica o valor do registro de Israel no deserto:

Ora, estas coisas [escritas nos livros de Moisés] se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. (1 Coríntios 10:6)

Estas coisas aconteceram com eles para servir de exemplo e foram escritas como advertência a nós, para quem o fim dos tempos tem chegado. (1 Coríntios 10:11)

Outras Abordagens ao Antigo Testamento

Deus projetou as Escrituras do Antigo Testamento para nós. Mas como devemos lucrar com elas?

Lucas 24 indica que seu significado é encontrado em apontar para Cristo. Mas na igreja ao longo dos séculos, esse significado nem sempre foi totalmente compreendido. Podemos considerar vários caminhos alternativos que os cristãos seguiram.

1. Uso Apenas do Novo Testamento

Um caminho é usar apenas o Novo Testamento. Vários pastores dão sermões e ensinam quase exclusivamente a partir do Novo Testamento. Da mesma forma, leitores comuns da Bíblia podem ignorar o Antigo Testamento e ler apenas o Novo.

O Novo Testamento é, de fato, a palavra de Deus. Mas compõe menos de um terço do todo. Essa estratégia de ignorar o Antigo Testamento não é compatível com o que o próprio Deus diz em Romanos 15:4 e em outros lugares sobre o valor contínuo do Antigo Testamento.

2. Uso do Antigo Testamento para Exemplos Morais, Bons e Ruins

Um segundo caminho é usar o Antigo Testamento como uma série de exemplos morais. Essa abordagem é chamada de “pregação exemplar”. Como devemos avaliá-la? De fato, há bons e maus exemplos morais no Antigo Testamento. E há também alguns exemplos mistos. Há pessoas como Abraão e Davi que são exemplos de fé, mas que tiveram sérias falhas morais em algum momento de suas vidas. Há pessoas como Acabe que eram perversas, mas que se humilharam (1 Reis 21:27–29). Os exemplos mistos são, de fato, bastante confusos se o que queremos são exemplos morais claros, preto no branco.

Mas o problema principal é mais profundo. Tal uso da Bíblia corre o sério risco de parecer ter uma mensagem que diz que devemos nos salvar por nossa própria força em esforço moral. “Seja bom como esses bons exemplos.” Acaba sendo moralismo, com a mensagem, “Salve-se”, e não as boas novas do que Deus fez em Cristo. O homem, não Deus, acaba sendo o centro da imagem. A Bíblia contém exemplos morais, mas o ponto em registrá-los nunca é meramente ser um exemplo. Há instruções sobre Deus e seus caminhos, caminhos que chegam ao clímax na obra de Cristo. Cristo é o Salvador. Ele, não nosso próprio esforço moral, nos resgata do pecado e da morte.

3. Uso do Antigo Testamento Simplesmente como um Registro Histórico

Um terceiro caminho é usar o Antigo Testamento simplesmente como um registro histórico. O Antigo Testamento registra o que as pessoas disseram e fizeram há muito tempo. Se escolhermos, podemos lê-lo apenas para obter informações. Algumas pessoas gostam de ler história. Não há nada de errado em estudar a Bíblia por suas informações históricas. Mas se isso é tudo o que fazemos, estamos tratando a Bíblia como nada diferente de qualquer outro registro do passado. Portanto, esse caminho de estudo não é adequado.

4. Uso do Antigo Testamento para o que Ele nos Ensina Sobre a Natureza de Deus

Um quarto caminho é usar o Antigo Testamento para nos ensinar sobre Deus. O Antigo Testamento nos ensina sobre Deus. E Deus é o mesmo em todos os tempos. Então, o ensino do Antigo Testamento sobre Deus é relevante para nós agora. Ainda assim, essa abordagem ainda não faz justiça ao que Jesus indica em Lucas 24 – que o Antigo Testamento não é apenas sobre Deus em geral, mas mais especificamente sobre o sofrimento e a glória de Jesus. Ele aponta para a redenção que ele realizou na história, de uma vez por todas.

5. Seja Inteligente: Encontre Segredos Estranhos

Um quinto caminho é encontrar segredos especiais no Antigo Testamento. Algumas pessoas estudam o Antigo Testamento para encontrar segredos. Elas encontram coisas lá que poucas outras pessoas encontraram. Suas interpretações são inteligentes e coloridas, mas estranhas. O problema aqui é o óbvio: os “segredos” que eles alegam encontrar são segredos da boca de Deus, ou são segredos inventados pela inteligência e imaginação hiperativa da pessoa que os está procurando?

A Acessibilidade da Bíblia

Como avaliamos a ideia de mensagens secretas? Podemos considerar novamente as passagens-chave no Novo Testamento sobre o valor do Antigo Testamento: não apenas Lucas 24, Romanos 15:4, 1 Coríntios 10:1–11, mas também Mateus 5:17–20, 19:3–9, 2 Timóteo 3:15–17 e outros. Tais passagens confirmam que Deus fez com que a Bíblia fosse escrita para todos, não apenas para uma elite espiritual especial que supostamente teria acesso secreto a verdades secretas. Os escritores do Novo Testamento foram especialmente inspirados pelo Espírito Santo. Mas quando eles apelam para uma passagem do Antigo Testamento, a atmosfera é aquela em que eles esperam que seu público veja a verdade com base no que a passagem do Antigo Testamento realmente diz. Por exemplo, os bereanos em Atos 17 são elogiados por “examinarem as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim.” (Atos 17:11). E como consequência, “muitos deles creram, mulheres gregas de alta posição social e muitos homens” (Atos 17:12). As passagens do Antigo Testamento que eles examinaram tinham significados abertos ao exame, não significados secretos que não tinham conexão com o que uma pessoa comum poderia ver.

Também devemos prestar atenção a uma verdade complementar. A obra do Espírito Santo é essencial para trazer à vida pessoas que estão espiritualmente mortas (Efésios 2:1). A respeito de Lídia, a vendedora de produtos de púrpura, a Bíblia diz: “o Senhor lhe abriu o coração para que estivesse atenta ao que Paulo dizia” (Atos 16:14). O Espírito Santo tem que trabalhar. Sua obra é essencial se as pessoas vão ser salvas ao colocar sua confiança em Cristo. Mas os corações e mentes dos ouvintes também estão ativos. Lídia prestou atenção.

Um princípio semelhante vale para nós como leitores modernos. Devemos pedir a Deus para nos ajudar e enviar seu Espírito Santo para abrir nossos corações. Não vamos entender como deveríamos a menos que o Espírito Santo nos dê entendimento:

[Paulo ora] ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, que conceda a vocês espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele (...) que ele ilumine os olhos do coração de vocês, para que saibam... (Efésios 1:17–18)

Além disso, à medida que o Espírito Santo trabalha em nós, devemos “prestar atenção”. Lídia prestou atenção ao que Paulo disse, palavras inspiradas pelo Espírito. Devemos prestar atenção a tudo o que a Bíblia diz. O problema não é que a mensagem da Bíblia seja inacessível, mas que nossos corações podem ser endurecidos pelo pecado. Como usar o Antigo Testamento com sabedoria Em suma, os caminhos alternativos não fazem realmente justiça ao papel que Deus pretendia que o Antigo Testamento tivesse. Precisamos crescer em nossa capacidade de entender o significado do Antigo Testamento em relação ao seu cumprimento em Cristo.

Um dos principais caminhos para esse propósito é a tipologia, o estudo dos tipos (no sentido especial da palavra).

Notas de Fim:

  1. Iain M. Duguid, Is Jesus in the Old Testament? (Phillipsburg, NJ: P&R, 2013), 9.

Este artigo foi adaptado de Biblical Typology: How the Old Testament Points to Christ, His Church, and the Consummation (Tipologia Bíblica: Como o Antigo Testamento Aponta para Cristo, Sua Igreja e a Consumação), de Vern S. Poythress.

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Vern S. Poythress (PhD, Harvard University; ThD, University of Stellenbosch) é Professor Emérito de Novo Testamento, Interpretação Bíblica e Teologia Sistemática no Westminster Theological Seminary na Filadélfia, Pensilvânia, onde leciona há quatro décadas. Além de obter seis títulos acadêmicos, ele é autor de vários livros e artigos sobre interpretação bíblica, linguagem e ciência.



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No texto original, as referências bíblicas citam a Bíblia English Standard Version (ESV).


Artigo original:


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