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Atos dos Apóstolos ensina o socialismo? (Atos 2)


Comunidade cristã primitiva ouve uma leitura da Bíblia (Jan Luyken, 1700) – Rijksmuseum [www.rijksmuseum.nl]
Comunidade cristã primitiva ouve uma leitura da Bíblia (Jan Luyken, 1700)
Acervo de Rijksmuseum (imagem original aqui)


por Brian Vickers — 14 de março de 2024

Leia a Passagem

42 E eles perseveravam no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. 43 Em cada um havia temor, e muitos sinais e feitos extraordinários eram realizados pelos apóstolos. 44 Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. 45 Vendiam suas propriedades e bens, e os repartiam com todos, segundo a necessidade de cada um. 46 E perseverando de comum acordo todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e simplicidade de coração, 47 louvando a Deus e contando com o favor de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava a cada dia os que iam sendo salvos. (Atos 2:42-47 – Almeida 21)

Interpretando Atos

Um dos maiores desafios na interpretação do livro de Atos, com o qual todo leitor deve lutar, é determinar se as partes narrativas do livro são descritivas ou prescritivas. Isto é, Lucas está meramente descrevendo o que aconteceu, mas não implicando ou mostrando que o evento ou ação deve ser repetido, ou está prescrevendo expectativa contínua, prática ou repetição dos eventos descritos? Uma narrativa prescritiva será sempre descritiva, mas um texto descritivo não precisa ser prescritivo. O leitor atento deve considerar o que pode ser pretendido como modelo ou resposta, mesmo quando nenhuma prescrição (ou comando) exata é dada.

Um excelente exemplo deste dilema interpretativo é encontrado na vida da igreja primitiva em Jerusalém. Em Atos 2:44-45, Lucas escreve: “Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e os repartiam com todos, segundo a necessidade de cada um”. Será que Lucas pretende, como alguns concluem, que os cristãos devam partilhar tudo o que têm, vender tudo e partilhar os lucros entre a igreja? Não há nenhuma indicação neste texto, e certamente não em textos posteriores em Atos – ou nas Epístolas, aliás – de que as Escrituras pretendam prescrever isso como prática obrigatória da igreja. Alguns, pensando que sim, chegaram ao ponto de sugerir versões cristãs da vida comunitária. Baseado no contexto de Atos 2, contudo, tal leitura interpreta mal a intenção de Lucas (cf. comentário em Atos 2:42-47 [em inglês]).

Os Primeiros Cristãos

Aqui Lucas oferece um retrato da prática deste primeiro grupo de crentes em Atos. Embora ainda não sejam rotulados como “igreja”, isto não quer dizer que nada aqui se aplique a igrejas, muito menos que os primeiros crentes em Jerusalém ainda não estavam preocupados com a “igreja”. Na verdade, estes versículos são tanto descritivos como prescritivos – isto é, descrevem a situação e também nos deixam padrões que devemos seguir. Como sempre em Atos, o truque é distinguir os dois, como veremos.

Claramente, o seu padrão contínuo fundamental era reunir-se em torno do ensino dos apóstolos (Atos 2:42). Lucas também observa que eles eram dedicados à reunião (“a comunhão”) e “no partir do pão e nas orações”. Embora não seja explicitamente declarado, é provável que “partir o pão” implique uma refeição compartilhada, incluindo a Ceia do Senhor (em contraste com Atos 27:34–35). As “orações” provavelmente incluíam momentos de oração tanto no templo como em outros lugares (Atos 2:46). Ensino, oração, comunhão e Ceia do Senhor são aspectos que a igreja de hoje pode e deve imitar.

Outros aspectos, contudo, são mais difíceis de aplicar de forma explícita. Por exemplo, os crentes ficaram cheios de admiração como resultado dos “muitos prodígios e sinais” (Atos 2:43) realizados pelos apóstolos. Tais maravilhas e sinais certamente incluíam cura (Atos 3:7) e talvez também outros dons, como os manifestados no Pentecostes. Independentemente do que tenha sido incluído, é difícil ver um padrão aqui estabelecido para reuniões cristãs posteriores. Somente os apóstolos realizaram prodígios e sinais, estabelecendo a sua autoridade e a sua continuidade com o ministério de Jesus. Tal como aconteceu com Jesus, os milagres atestaram a realidade e a autenticidade do reino. Tais milagres, especialmente de cura, apontavam para o cumprimento das promessas do reino e para a natureza holística e escatológica do reino da nova aliança.

Além disso, não há nenhum padrão contínuo ao longo de Atos que indique ou estipule sinais e maravilhas como normais ou típicos para reuniões de crentes. Eventos milagrosos em meio às reuniões cristãs certamente não serão impossíveis depois disso, mas não há base para concluir que necessariamente ocorrerão com base no texto de Atos.

Os versículos 43 e 44 causaram muita controvérsia ao longo dos anos, bem como interpretações bem-intencionadas, mas equivocadas. Esses versículos não são um exemplo, e certamente não são um padrão prescrito, de alguma forma de socialismo cristão. Os crentes realizaram essas ações voluntariamente (Atos 2:42); eles não foram ordenados a fazê-lo. Mais tarde, Ananias e Safira são condenados por mentir, e não por reterem uma parte dos seus bens (Atos 5:4). Alguns grupos marginais, interpretando mal a distinção entre descrição e prescrição, estabeleceram comunidades ou cultos com base neste texto. Mas esses crentes não desistiram de todos os seus bens e propriedades. Pelo contrário, ainda possuíam propriedades, continuando a reunir-se em residências. Além disso, é evidente nas partes posteriores de Atos e nas Epístolas que os primeiros cristãos não vendiam tudo e se mudavam para comunas ou complexos (cf. Atos 12:12; Atos 16:15; Atos 18:7-8; Atos 21:8, 16; Romanos 16:5; 1 Coríntios 16:19; Colossenses 4:15). Paulo, por exemplo, recomenda que os crentes com recursos suficientes comam em casa, em vez de comerem de uma refeição comum, para que os necessitados não fiquem sem (1 Coríntios 11:22). A prática relatada em Atos 2 e Atos 4 parece ser um fenômeno mais comum em Jerusalém, no período inicial do cristianismo. Isto pode ter sido devido à situação monetária de muitos crentes ali; talvez, ao se tornarem crentes em Cristo, eles tenham sido condenados ao ostracismo por seus companheiros judeus. Seja qual for o caso, continua a ser verdade que não há nenhuma ordem dada explicitamente, nem a narrativa implica uma ordem, para vender tudo e morarmos juntos.

É revelador que Lucas mencione duas vezes a partilha entre os primeiros crentes em trechos nos quais ele resume o comportamento dessa comunidade (Atos 2:42-47; Atos 4:32-37). Tal generosidade é uma das manifestações claras da obra do Espírito na vida dos crentes, à medida que eles começam a viver para o bem dos outros e não apenas para si mesmos. Essa centralidade no outro é um princípio fundamental da fé (cf. Filipenses 2.5ss), pois manifesta obediência ao grande mandamento de “amar o próximo como a si mesmo” (Levítico 19:18; Mateus 22:39). Juntamente com a comunhão em torno dos ensinamentos dos apóstolos, das refeições comuns e da oração, a prática da partilha gratuita é evidência da salvação através do poder do Espírito. Os crentes não são apenas levados a concordar com o ensino sobre Jesus; eles mudam fundamentalmente a forma como vivem, demonstrada em extraordinária generosidade e preocupação com o bem-estar dos outros.

É fácil para os evangélicos afirmarem a natureza descritiva deste texto, mas depois ignorarem o fato de que o texto fornece um padrão geral que devemos imitar. A generosidade vinda do coração, o pouco apego aos bens e a colocação das necessidades dos outros em primeiro lugar são prescritos em todo o NT e apoiados pela experiência desses crentes de Jerusalém.

Os últimos versículos do capítulo 2 revelam uma comunidade cheia do Espírito, crescendo em número, transbordando de gratidão e caridade – uma bela imagem do poder transformador do Espírito através do ministério do evangelho. Esta é também uma imagem, um prenúncio da vida que está por vir. Na comunidade capacitada pelo Espírito, o reino escatológico irrompe no presente, da mesma forma que o céu e a terra se encontram em Cristo ressuscitado. Uma comunidade crente – focada no evangelho, louvando a Deus, orando e colocando com alegria as necessidades dos outros em primeiro lugar – experimenta e mostra ao mundo a realidade do céu aqui e agora. Lucas nos deixa um modelo não de como “fazer” a igreja, mas de como o povo de Deus deveria ser em termos de prioridades, ações, serviço e prática.

Este artigo de Brian J. Vickers o faz parte da série Tough Passages (Passagens Difíceis) e foi adaptado do ESV Expository Commentary: John – Acts (Volume 9).


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No texto original, as referências bíblicas citam a Bíblia English Standard Version (ESV).


Artigo original:


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dúvidas cristãs, bíblicas :: dúvidas sobre a interpretação bíblica, do Novo Testamento


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