Resolvi que não gosto mais dos termos nações, povos não alcançados, grupos étnicos, povos minoritários. De repente, no meio de mais uma reunião estratégica de um grupo de líderes missionários de vários países, em que discutíamos planos de trabalho para a Ásia e o sul do Pacífico, cansei-me. Não gosto dos termos movimento cristão, crescimento, reino e todos os outros termos do mesmo pacote.
Sinto-me mais honesta com Deus quando me preocupo com as gentes – com as Marias, com os Joões, com os Pedros, com as Suzanas de todos os lugares. Em fevereiro, houve um terrível terremoto num dos lugares onde pretendo começar um trabalho em 2013, as ilhas Salomão. O terremoto causou um tsunami de 1,5 metro e devastou uma ilha do arquipélago.
Mais de oitenta casas foram destruídas e muitas Marias, Joões e seus filhos desapareceram. São meus vizinhos de isolamento no mar. Imagino a aflição, a angústia, a sensação de impotência diante da imensidão do oceano que se levantou contra eles. As vilas costeiras, de línguas diferentes, compartilham a mesma perplexidade diante da tragédia.
Cada língua que se perde num lugar destes significa uma velhinha que morreu sem nunca ter ouvido a frase “Deus te ama”, nem nunca ter visto o neto gritar, na mesma língua: “Vovó, me dá colo!”. Se penso assim, sinto-me capaz de orar por eles. Minha oração chora. Minha oração sente. Não oro mais pelos perdidos ou pelas almas da nação com mais de quarenta povos não alcançados. Oro pelas gentes.
Por muitos anos trabalhei com o processo de contextualização da teologia. Cheguei à conclusão de que Jesus se contextualiza a si mesmo. A verdade-gente, Jesus Cristo, vai além da mera comunicação conceitual e comunica a sua gentisse divina aos povos que visita. Jesus faz sentido por si só por ser o Cristo-homem. Suas histórias se encarnam em esperanças e histórias reais. Um Cristo sem barba e nu para os índios amazônicos; um Cristo com barba dura como um arame, traços negroides, pernas tortas e corpo anêmico para os habitantes da Papua-Nova Guiné; um Cristo alto, gordo e sorridente para os samoanos. Não importa como ele se vista ou com quem se pareça, ele é capaz de comunicar a si mesmo com a mesma natureza – sua natureza de amor.
O que no começo me pareceu complexo, difícil, quase impossível – comunicar a verdade do evangelho a culturas tão diferentes –, agora me parece algo simples. É o Deus-gente falando às gentes.
Nossa sociedade cristã, mergulhada neste evangelho por tanto tempo, sistematiza e quantifica a graça. Usamos palavras religiosas e clichês para nos referirmos à tarefa básica deixada por Cristo. “Se você é amado por mim, seja amor para os outros. Ame aquele a quem eu amo” – nos disse ele de várias formas.
Nas reuniões cristãs, os clichês se empilham sobre as mesas, e de repente tudo se torna muito árido e facilmente descartável. Se você tem chamado para a igreja, deixa de ter chamado para missões e vice-versa. Gente não deixa de ser gente porque está perto ou longe. Alguns que se sentem chamados às nações não oram e não se importam com sua terra local ou com seus vizinhos. É fácil ignorar a dor que está à sua frente e, mais ainda, a que está distante, se esta dor é sem cheiro e sem cor. Termos religiosos funcionam como escudos emocionais, técnicas psicológicas de distanciamento.
O fato é que Milena, dona de casa, mãe de dois filhos pequenos, que trabalha em tempo integral no governo de um pequeno país-ilha, que faz curso de pedagogia online e dedica seus fins de semana para traduzir porções da Bíblia para a língua sonsorol – falada apenas por ela e mais duzentas pessoas no mundo –, não é conhecida por Jesus como a “tradutora nativa de uma língua minoritária de Palau”. Sua vida tem cheiro, cor, sorriso e lágrimas. Ela merece de nós mais do que apenas clichês e rótulos religiosos.
Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical. braulia_ribeiro@yahoo.com
Fonte: Ultimato
Comentários