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Brasil, um país de castas



Uma vez por semana nos vestimos em roupas queimadas de água sanitária enchemos o carro de baldes e produtos químicos e vamos fazer limpeza em casas. Nos tornamos os típicos latinos que até se matam atravessando fronteiras pelo sonho do sub-emprego bem pago na América.

Não é um trabalho integral, nem nos seria permitido com o visto religioso que temos. A maior parte de nosso tempo gastamos no trabalho missionário aqui do campus e viajando onde os projetos requerem. Mas a vida aqui é cara. Os bicos que fazemos na limpeza pagam as escolas dos filhos, a conta de energia, o diesel do velho oldsmobile.

Nas primeiras vezes foi interessante, brincávamos com a idéia, e até pra quem trabalhou tanto tempo administrando crises, em liderança na vida de gente, na vida de tribos inteiras, passar paninho em móveis significa uma mudança pra menos stress. Mas depois de algumas semanas o cheiro de água sanitária não era mais tão agradável assim. As horas gastas na limpeza começaram a cobrar um preço no nosso trabalho no campus. Pior ainda, nossa auto-estima ficou afetada. Quem somos nós agora, meros imigrantes de baixa categoria, tendo que enfrentar uma carga de trabalho alta para sobreviver, quando antes éramos lideres de muitos missionários, escritores, pregadores? Nosso senso de valor pessoal ficou em cheque.

Existe no Brasil o conceito de casta? Como vemos o trabalhador do sub-emprego, a empregada doméstica, o braçal? Se nos compararmos com a Índia, Nepal e outros países da Ásia podemos pensar que não. Nosso sistema não é franco, abertamente castista, nem baseado em pressupostos religiosos. Mas a casta existe. Sua cabeça como a de uma serpente se apresenta venenosa nos encontros sociais, na divisão de empregos, na distribuição de renda. Se você já foi em um apartamento de classe media numa grande cidade qualquer do Brasil pode ver a casta na arquitetura. No fundo do apartamento um quartinho de 2 metros por 1 e meio e um banheiro mais mínimo ainda, sem vista com uma entrada à parte que leva à cozinha e à àrea de serviço revela: ainda existe a senzala no Brasil do século XXI. Você sabe a que classe a pessoa pertence pelo jeito dela falar, pelas roupas que usa, pelo carro que tem, o bairro onde mora.

A classe vai determinar como se processa o relacionamento social e as oportunidades que ela vai ter na vida, e até os direitos que tem diante da lei. Não que a pessoa esteja presa inexoravelmente à classe, mas não são muitos os que conseguem romper o disfarçado mas rígido castismo do Brasil para alcançar padrões sociais mais altos do que nos quais nasceu.

A igreja evangélica de certa forma quebra estas divisões no Brasil e nos iguala no corpo de Cristo. No entanto a medida que ela envelhece se acomoda a uma transformação superficial da cultura e adota sincreticamente as mesmas classes em outras formas.

A questão econômica hoje não é se países como o Brasil e a Índia vão crescer ou não. Por circunstâncias macro-econômicas a riqueza está nos caindo no colo. Mas será que o crescimento e a riqueza vão significar uma melhora de vida para todos, será que vai significar o mesmo para um intocável do que para um brahmin? Poderão o Brasil e a Índia se transformar numa América que remunera um pedreiro com a mesma honra de um advogado? O trabalho duro em si não gera mais justiça social.

O que gera uma melhor distribuição de renda é o pressuposto básico da igualdade. Quando todos somos iguais, o trabalho merece um pago digno. As diferentes funções sociais e profissões se tornam complementares. Mas a força da lei somente, não opera o milagre da igualdade numa sociedade. A constituição indiana aboliu o sistema de castas, no entanto na prática ele continua existindo. Getúlio Vargas no Brasil regulou os direitos trabalhistas, mas a distância econômica entre as classes sociais permanece abismal.

A consciência da igualdade tem que vir de convicções mais profundas. George Whitefield no século XVIII pregando para multidões de colonos britânicos na Virgínia começou um movimento sem precedentes nem na Europa. A idéia da salvação individual que ele pregava até então quase desconhecida, provocou ondas de avivamentos que chamavam para uma vida cristã holística, que cuidava do pobre e do necessitado, que se fazia presente em todas as esferas da sociedade e que valorizava a cada indivíduo como um cidadão.

Os americanos à partir de Whitefield sonharam em ressurgir das cinzas da Europa injusta, de governo autoritário e sociedade dividida e gerar um Novo Mundo, onde todos são iguais diante de Deus e tem igual oportunidade de trabalho. E eu e o Reinaldo aqui em nosso oldsmobile com a roupa cheirando a Kiboa repetimos pra nós mesmos que apesar do Brasil nos dizer diferente, trabalho braçal não é desonroso. Roupa velha não te faz menos gente, ser doméstica não te torna cidadã de segunda categoria.

Enquanto a igualdade não for um grito primal da teologia evangélica, não vamos chegar lá. Enquanto não nos crermos essencialmente dignos, sem nenhum “se” não vamos chegar lá. A idéia da igualdade tem que ser um credo repetido por todos, credo pelo qual estamos dispostos a morrer. Creio na igualdade entre os homens como creio no Deus que nos criou e nos salva, creio numa sociedade brasileira livre das classes colonialistas e da injustiça sistêmica. Amém e amém.

Fonte: Ultimato // Cartum de Humorbabaca

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