Por Bráulia Ribeiro
Era um travesti alto, magro e desengonçado, e tinha uns implantes. Não
sei como começou na homossexualidade, mas disse que tinha sede de Deus desde
antes. Quando criança, num passeio a uma Igreja Católica com sua mãe, viu um
caixão de vidro com uma estátua de Jesus dentro. “Igreja do Jesus morto”; a mãe
era devota. Quando chegaram perto, ele, pirralho, sentiu que Jesus lhe olhava.
– Mãe, Jesus está vivo!
– Pare de dizer besteira, menino… – ela não viu, mas ele sabia que Jesus
não estava morto.
Adulto, Daisy foi se desiludindo consigo mesmo numa sede que não
terminava por outro tipo de vida, apesar de ter tudo o que um travesti poderia
desejar, como um parceiro e um filho adotivo. Ligava o rádio na sintonia dos
pentecostais. Ouvia músicas e pregações o dia inteiro.
Não se cansava nem da repetição nem dos chavões. Ouvia até a hora de
sair para ganhar a vida na rua. Tornou-se um hábito ouvir o evangelho. O
parceiro e os vizinhos se irritavam. Daisy ficava mais amuado, mais convicto.
Começou a ler a Bíblia.
Uma noite não agüentou mais. Percebeu que não tinha coração para levar a
vida assim. Decidiu que aquela seria a sua última noite na rua. Ouviu rádio e
pegou a Bíblia. Abriu no primeiro capítulo de Apocalipse, que fala sobre a
revelação de Jesus, em suas vestes de luz e língua como espada de fogo. Lindo!
Assim seria sua fantasia, a última da vida de rua.
– Vou de “drag-jisas”.
Enfeitou-se todo de branco e dourado, reverente. Não era uma drag
qualquer, era o próprio Jesus de uma maneira simbólica dizendo-lhe que chegara
sua hora de mudar. Não conseguiu fazer a vida naquela noite; pregava sem parar,
como os pregadores do rádio que ouvia há tanto tempo. Pregava para as
prostitutas, para os clientes, para os passantes. O ponto se esvaziou, os
habituais corriam para não ouvi-lo. Finalmente, no romper da manhã, tendo
arruinado a noite de todos os freqüentadores do ponto, sentou-se feliz,
cantando uma daquelas músicas do tipo “sai demônios e vem Jesus”.
Logo depois Daisy adoeceu e descobriu-se portador do vírus HIV.
Estranhamente não teve medo. Sua irmã conhecia algumas pessoas em Belo
Horizonte e resolveu dar uma passada por lá para ver se encontrava ajuda para
ele. A vida tem seus caminhos; ao receber a medicação, Daisy encontrou também
algumas pessoas do grupo VHIVER, que ajuda portadores do vírus da aids a viver
com qualidade. De lá esbarrou nos crentes da Caverna de Adulão e conheceu o
Jesus que amava. Converteu-se, “destravecou-se”, “homenzou-se” do melhor jeito
que pôde. O parceiro ficara no Rio de Janeiro com o filhinho adotivo.
Teve de dizer-lhe que era homem agora e que cuidaria do filho, mas já
não seria “casado”. Sentiu-se puro como um bebê. Dizia que já tinha feito sexo
demais a vida toda e agora não precisava mais; iria viver para Deus de todo o
seu coração…
Mas não podia ficar em Belo Horizonte, tinha de voltar ao Rio. O
Geraldo, da Caverna, se preocupou: “E agora, o que vai ser de Daisy? Quem vai
entendê-lo para integrálo?”
A essa altura Daisy já se chamava como homem, mas os
trejeitos de uma vida no submundo não saem fácil. As marcas (as mãos na
cintura, o andar reboloso e a voz fina que ainda desafina) ficam. Daisy voltou
para o subúrbio do Rio. Despachou o parceiro, pegou suas coisas e mudou-se. Mas
aí veio a parte dura: conseguir um emprego, se sustentar de maneira digna e
encontrar uma igreja onde fosse aceito. Nos primeiros meses quase não tinha
dinheiro; a única congregação do bairro era o lugar mais perto. As emoções de
Daisy ainda eram as emoções de uma caricatura de mulher. Ia à igreja esperando
amor como o que encontrara em Belo Horizonte. No começo encontrava o porteiro:
– “Tem culto hoje não, desculpe.”
– “Ah…” – o ar decepcionado de Daisy não mudava em nada a cara do
porteiro.
Infelizmente a igreja não conseguiu entender o rapaz. Daisy tentou mais
uma e mais outra. Mas o que aconteceria se no bairro vissem aquele homem ainda
com peitos freqüentando os cultos? Terminou por entender que não era bem-vindo
– mais uma ferida para carregar para quem já sofreu tantas.
Sem ajuda na fé e sem apoio econômico e social para recomeçar, a fé de
Daisy se apagou. Geraldo o viu um dia desses nas páginas de uma revista,
militando pela causa homossexual, e respirou aliviado, pensando: “Pelo menos
ele ainda está vivo…”
Daisy, se você está lendo isto, tente outra vez. Vamos aprender a
caminhar com você pelo caminho da restauração. Vamos aprender a fazer da sua
vergonha a nossa vergonha e, pelo naosso amor, fortalecer a sua fé naquele que
nos transforma.
Fonte: ultimato
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