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OBRIGADO, SENHOR



Em seu livro Mortal lessons, o médico Richard Selzer escreve:

Estou em pé junto ao leito onde jaz uma jovem, seu rosto em pós-operatório; sua boca, retorcida com paralisia, tem um quê de palhaço. Um minúsculo ramo do seu nervo facial, aquele que controla os músculos da boca, foi removido. Ela ficará assim daqui em diante. O cirurgião havia seguido com religioso fervor a curvatura da sua carne, isso eu podia garantir. No entanto, para remover o tumor de sua bochecha, tive de cortar aquele nervinho.

O jovem esposo dela está no quarto. Ele está em pé no lado oposto da cama e juntos eles parecem habitar a luz vespertina da lâmpada, isolados de mim, num mundo particular. Quem são eles, pergunto a mim mesmo, ele e esta distorcida boca que fiz, que olham-se um ao outro tão generosamente, com tanta avidez? A jovem fala:

— Minha boca vai ficar assim para sempre?
— Sim — digo.
— Vai ficar assim, porque o nervo foi cortado.
Ela assente e silencia. Mas o jovem sorri.
— Eu gosto — ele diz. — Acho uma gracinha.

De repente sei quem ele é. Compreendo e baixo os olhos. Não devemos ser ousados na presença de um deus. Sem nenhum constrangimento, ele inclina-se para beijar a boca torta, e estou tão perto que consigo ver como ele entorta seus próprios lábios para ajustá-los ao dela, para mostrar-lhe que o beijo deles ainda funciona".

Desde que li essa passagem, tem me assombrado a imagem do marido entortando a boca e retorcendo os lábios para um beijo íntimo com a esposa paralisada.

Porém algo me escapou até que um dia, em oração, veio-me à memória de forma renovada a violência ocorrida numa colina do lado de fora das muralhas da velha Jerusalém.

O corpo mutilado do Filho está suspenso, exposto ao escárnio do mundo. Ele é um blasfemador de Deus e um sediciador do povo. Que morra em desgraça. Seus amigos estão dispersos, sua honra estilhaçada, seu nome motivo de zombaria. Ele foi abandonado por seu Deus. Deixado absolutamente só. Arrastem-no para fora da cidade santa e pelos meandros aos quais pertence gente como ele. O Cristo maltrapilho é tratado grosseiramente, empurrado de um lado para o outro, açoitado e cuspido, assassinado e enterrado em meio aos da sua própria laia.

A fim de dramatizar a sua morte, alguns pintores cristãos concederam ao Cristo crucificado um olhar dirigido para o alto e uma boca contorcida; usaram pigmento vermelho para fazerem gotas de sangue realistas fluírem de suas mãos, pés e lado.
Em 1963, um amigo deu-me um crucifixo de grande valor.
Um artista francês havia entalhado em madeira, com grande cuidado, as mãos de Jesus na cruz.

Na Sexta-feira Santa os artistas romanos entalharam — ah! Deus, como entalharam! — nosso irmão Jesus sem qualquer cuidado. Nenhuma arte foi requerida para bater os pregos com os martelos, nenhum pigmento vermelho necessário para fazer sangue de verdade jorrar de suas mãos, pés e lado. Sua boca contorceu-se e seus lábios ficaram retorcidos no mero ato de erguê-lo para a cruz. Nós já teologizamos tanto a paixão e a morte desse homem santo que não enxergamos mais o vagaroso rasgar dos tecidos, o alastramento da gangrena, sua sede exacerbada.

Em sua obra monumental, The crucified God, Jurgen Moltmann escreve: "Tornamos a amargura da cruz, a revelação de Deus na cruz de Jesus Cristo, tolerável para nós mesmos aprendendo a compreendê-la como uma necessidade no processo da salvação".

Roslyn e eu estamos caminhando ao longo da Royal Street no Bairro Francês de Nova Orleans. Adjacente à infame Borboun Street com seus entrepostos de jazz, lojas de camisetas e sex-shops, a Royal é pontuada de lojas de antiguidades.

— Venha ver isso — diz o antiquário.
— A Vénus custa mais, mas esse Cristo crucificado de marfim é bonito a seu modo, especialmente contra um fundo roxo.

E quanto mais o reproduzimos, mais esquecemos a respeito dele e da agonia da sua terceira hora. Transformamo-lo em ouro, prata, marfim ou o que quer que seja a fim de nos libertarmos da sua agonia e morte como homem.

"Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2Co 5:21).

Brennan Manning em O Evangelho maltrapilho

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