Tem assuntos que ninguém gosta de falar. Quando uma mulher indígena do grupo arawá sai para dar à luz, por exemplo, ninguém vai junto. Esse é um momento só dela. Ela sai sozinha, mesmo que seja muito jovem e aquele seja seu primeiro bebê. Ela procura uma árvore ou arbusto onde possa se apoiar, se agacha, e ali enfrenta suas dores. É ali, na hora do parto, que essa jovem mãe tem a grande responsabilidade de decidir o futuro da criança. Ela só poderá ficar com o bebê se ele for perfeito.
Se por alguma razão ela volta para a casa sem o bebê nos braços, o silêncio é geral. Ninguém pergunta o que houve. Nem o pai da criança, nem os avós, nem a amiga mais próxima. A jovem se afunda em sua rede, muitas vezes sem coragem ou forças nem para chorar. O assunto morre ali mesmo. Ninguém pergunta por que ela voltou sem o bebê. A mãe terá que carregar sozinha, em silêncio, pelo resto da vida, a lembrança dessa maldição, dessa má sorte, dessa infelicidade.
Às vezes ouve-se ao longe o choro abafado da criança, abandonada para morrer na mata. O choro só cessa quando a criança desfalece, ou quando é devorada por algum animal. Ou quando algum parente, irritado com a insistência daquele choro, resolve silenciá-lo com uma flecha ou um porrete.
Depois disso o silêncio é absoluto.
O infanticídio é um tabu. Da mesma maneira que o assunto é evitado nas sociedades indígenas, é evitado também na nossa sociedade. Ninguém fala, ninguém enfrenta, ninguém toma posição.
A posição mais cômoda continua sendo a da omissão - omissão muitas vezes maquiada de respeito às diferenças culturais.
Estamos vivendo um momento de mudança de atitudes. Algumas mulheres indígenas resolveram abrir a boca sobre esse assunto, tão polêmico e ao mesmo tempo tão doloroso para elas. A partir da iniciativa dessas mulheres, o tabu começou a ser quebrado e a mídia nacional vem veiculando diversas matérias sobre o assunto (Revistas Consulex – outubro 2005, Problemas Brasileiros, do SESC/SP de maio-junho 2007; Cláudia, julho de 2007; Veja, agosto 2007, dentre outras).
Nossa sociedade precisa parar de falar por um momento e ouvir essas vozes.
Os números são alarmantes.
Quebrando o Silêncio aborda o infanticídio a partir do depoimento dos próprios indígenas. Reúne relatos de parentes de vítimas, de agressores e de sobreviventes.
São ouvidos, ainda, antropólogos, advogados, religiosos, indigenistas e educadores.
Esperamos que este material ofereça dados suficientes para que se possa pelo menos tomar uma decisão importante. A decisão de levar essa discussão adiante - ouvir, discutir, refletir, com imparcialidade, e criar condições para que as comunidades indígenas possam resolver os conflitos que causam o infanticídio. Que, pelo menos por um momento, possamos silenciar ideologias e paixões e ouvir com empatia a voz de mulheres que se cansaram de enfrentar sozinhas essa dor. Que possamos tomar a decisão responsável de quebrar o silêncio sobre o infanticídio.
O que é Infanticídio?
Popularmente usado para se referir ao assassinato de crianças indesejadas, o termo infanticídio nos remete a um problema tão antigo quanto a humanidade, registrado em todo o mundo através da história.
A violência contra as crianças é uma marca triste da sociedade brasileira, registrada em todas as camadas sociais e em todas as regiões do país. No caso das crianças indígenas, o agravante é que elas não podem contar com a mesma proteção com que contam as outras crianças, pois a cultura é colocada acima da vida e suas vozes são abafadas pelo manto da crença em culturas imutáveis e estáticas (ver box ao lado).
A cada ano, centenas de crianças indígenas são enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta. Mães dedicadas são muitas vezes forçadas pela tradição cultural a desistir de suas crianças. Algumas preferem o suicídio a isso.
Muitas são as razões que levam essas crianças à morte. Portadores de deficiência física ou mental são mortas, bem como gêmeos, crianças nascidas de relações extra-conjugais, ou consideradas portadoras de má-sorte para a comunidade. Em algumas comunidades, a mãe pode matar um recém-nascido, caso ainda esteja amamentando outro, ou se o sexo do bebê não for o esperado. Para os mehinaco (Xingu) o nascimento de gêmeos ou crianças anômalas indica promiscuidade da mulher durante a gestação. Ela é punida e os filhos, enterrados vivos.
É importante ressaltar que não são apenas recém-nascidos as vítimas de infanticídio. Há registros de crianças de 3, 4, 11 e até 15 anos mortas pelas mais diversas causas.
Em certas comunidades, aumentam os casos entre mães mais jovens. Falta de informação, falta de acesso às políticas públicas de educação e de saúde, associadas à absoluta falta de esperança no futuro, perpetuam essa prática.
“As crianças indígenas fazem parte dos grupos mais vulneráveis e marginalizados do mundo, por isso é urgente agir a nível mundial para proteger sua sobrevivência e direitos (...)”
Relatório do Centro de Investigação da UNICEF, em Florença, Madrid, fevereiro de 2004
HAKANI, Uma menina chamada sorriso
Hakani nasceu em 1995, filha de uma índia suruwaha. Seu nome significa sorriso e seu rosto estava sempre iluminado por um sorriso radiante e contagioso. Nos primeiros dois anos de sua vida ela não se desenvolveu como as outras crianças – não aprendeu a andar nem a falar. Seu povo percebeu e começou a pressionar seus pais para matá-la. Seus pais, incapazes de sacrificá-la, preferiram se suicidar, deixando Hakani e seus 4 irmãos órfãos.
A responsabilidade de sacrificar Hakani agora era de seu irmão mais velho. Ele levou-a até a capoeira ao redor da maloca e a enterrou, ainda viva, numa cova rasa. O choro abafado de Hakani podia ser ouvido enquanto ela estava sufocada debaixo da terra.
Em muitos casos, o choro sufocado da criança continua por horas até cair finalmente um profundo silêcio – o silêncio da morte. Mas para Hakani, esse profundo silêncio nunca chegou. Alguém ouviu seu choro, arrancou-a do túmulo, e colocou nas mãos de seu avô, que por sua vez levou-a para sua rede. Mas, como membro mais velho da família, ele sabia muito bem o que a tradição esperava dele.
O avô de Hakani tomou seu arco e flecha e apontou para ela. A flechada errou o coração, mas perfurou seu ombro. Logo em seguida, tomado por culpa e remorso, ele atentou contra a própria vida, ingerindo uma porção do venenoso timbó. Para Hakani, ainda não era a hora de cair o profundo silêncio; mais uma vez ela sobreviveu.
Hakani, tinha apenas dois anos e meio de idade e passou a viver como se fosse uma amaldiçoada. Por três anos ela sobreviveu bebendo água de chuva, cascas de árvore, folhas, insetos, a ocasionalmente algum resto de comida que seu irmão conseguia para ela. Além do abandono, ela era física e emocionalmente agredida. Com o passar do tempo Hakani foi perdendo seu sorrido radiante e toda sua expressão facial. Mesmo assim o profundo silêncio não caiu sobre ela. Finalmente foi resgatada por um de seus irmãos, que a levou até a casa de um casal de missionários que por mais de 20 anos trabalhava com povo suruwahá.
Esse casal logo percebeu que Hakani estava terrivelmente desnutrida e muito doente. Com cinco anos de idade ela pesava 7 quilos e media apenas 69 centímetros. Eles começaram a cuidar de Hakani como se ela fosse sua própria filha. Eles cuidaram dela por um tempo na floresta, mas sabiam que sem tratamento médico ela morreria. Para salvar sua vida, eles pediram ao governo permissão para levá-la para a cidade.
Em apenas seis meses recebendo amor, cuidados e tratamento médico, Hakani começou a andar e falar. Aquele sorriso radiante voltou a iluminar seu rosto. Em um ano seu peso e sua altura simplesmente dobraram. Hoje Hakani tem 12 anos, adora dançar e desenhar. Sua voz, antes abafada e quase silenciada, hoje canta bem alto – uma voz pela vida.
Você quer saber mais? Acesse: http://www.hakani.org/pt/default.asp e http://atini.org
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